INVENTAR É SOLUÇAR DENTRO DA ÁGUA - UMA CONVERSA COM MIA COUTO
Apadrinhou o meu primeiro livro "Os ângulos da casa". Conhecemo-nos na Feira do Livro da Minerva Central no lançamento da antologia "A minha Maputo é…" na comemoração dos 125 anos da cidade de Maputo. Aproximou-se e disse que me reconhecera pela foto da antologia, que tinha gostado imenso do meu texto. Fiquei emocionada; não sabia se sorria ou se agradecia.
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Hirondina Joshua: O escritor e o mundo vivem na armadilha dos dias. O que faz o texto? Uma coisa que está fora dele? Ou ele fora de uma coisa? O ser escritor é diferente do ser vivente. Escrever é uma outra dimensão de viver? Quem é você escrevendo?
Mia Couto: Disseram-nos que existem duas dimensões distintas: a realidade e a ficção. Não sei se é verdade. Há culturas em que persiste uma ausência de fronteira entre o mundo “real” e o “inventado”. Todos nós viemos dessa cultura mais antiga em que essa distinção era pouco clara. Muito do que sabíamos era ditado pelos sonhos. Os poetas de hoje resgatam essa sabedoria mais holística e mais orgânica. Em Moçambique, felizmente, sobrevive uma ideia do universo que não separa tanto as criaturas vivas das não vivas e que não distingue aquilo que tem e não tem alma. Uma montanha pode ser sagrada, um rio pode ser uma mulher, uma pedra pode ter alma. A literatura (e em particular a poesia) querem restituir essa visão integrada das coisas que nunca chegam a ser apenas coisas e de um universo cuja alma é partilhada por todos. O facto de, em muitas das nossas línguas indígenas, não existir uma palavra concreta para dizer “Natureza” não é uma menoridade. Ao contrário, representa um modo mais ecológico e mais integrado de ver o mundo. Quando escrevo eu deixo de ter medo de ser pequeno. Quando escrevo converto-me no universo. Sou os outros, sou a humanidade inteira. Não porque seja grande, mas porque deixei que a vida tomasse posse de mim.
HJ: Nikola Tesla queria iluminar a Terra toda com energia (electricidade). Dizia que energia está em todo lugar, no interior da Terra, por baixo, por cima, no lugar palpável e no imaterial. Pode-se dizer que não existe texto mau, o que existe é uma descontinuidade atribuída ao poético; a intervenção cega da energia motora?
MC: Não sei se entendi a pergunta. Acho que existem muitas perguntas nessa pergunta. É difícil avaliar um texto literário com um só critério que se apresente como padrão de qualidade. Um texto bom para mim é aquele que me faz perder o lugar de leitor. Eu passo à condição de co-autor desse texto, sou invadido pela ilusão daquela escrita estar a ser inventada no preciso momento da leitura.
HJ: Às vezes as palavras são rebeldes e invadem a sintaxe e a gramática. A criação é revelação ou encantamento? Vejo uma grande analogia do texto antes de ele existir e das imagens quando sonhamos. A criação que precede a criação: o ritmo.
MC: Acho que já referi na primeira resposta que se criaram fronteiras e hierarquias daquilo que nos é revelado como sendo “o mundo real”. Desvalorizou-se o papel das histórias, dos mitos, dos sonhos. Desqualificou-se a oralidade como algo que pertence ao património dos chamados povos “primitivos”. Não existe ser humano que não seja criador, que não seja um poeta. O que sucede é que se vai asfixiando essas potencialidades e se vão fechando janelas que nos deviam ajudar a ver o mundo nas duas infinitas dimensões.
HJ: É possível escapar da imaginação sem mencionar a realidade?
MC: Não sei o que é a “realidade”. Ninguém sabe e todos mantém essa crença que ela existe, numa espécie de plano de uma só dimensão e na qual todos vivemos imersos . Existem realidades no plural, de acordo com o diverso modo como cada pessoa, cada cultura, cada religião sente o seu mundo e o seu tempo. Uma dessas múltiplas dimensões da realidade só pode ser visível por via da poesia. A poesia e a linguagem metafórica não são apenas disciplinas artísticas. São um modo de ver a vida e de sentir a humanidade.
HJ: Inspiração é quando entramos e tocamos alguma coisa, abalamos o sopro e depois olhamos o risco que foi feito e continuamos a tocar e continuamos a entrar.
MC: A palavra tem corpo. Realmente ela toca nas coisas não com a arrogância de sermos nós os seus criadores mas que fomos capazes de criar um relação de intimidade com essa coisa. Se eu parar junto a uma árvore comum num passeio da cidade e se deixar que me, por um momento, me apague e esteja disponível a sentir essa outra criatura, haverá certamente algo de transcendente que sucede. Há um ditado moçambicano que diz isto de uma maneira surpreendentemente concisa e bela: “se olhares os olhos de uma formiga, então, tu és uma formiga”. É extraordinária essa capacidade de, em poucas palavras, transmitir algum tão profundo.
HJ: A nossa primeira relação com o outro dá-se na face, vemos a do outro e não a nossa própria.
Há o extraordinário nos espelhos irrefletidos. Olhar é comprometedor; uma pessoa que nunca viu o seu reflexo teria a ideia de beleza ou de feiura? Pergunto-me. Esse espelho vem sempre com rasuras. É interessante como grande parte de autores anuncia não gostar de se reler, deve ser por isso? Olhar-se dói?
MC: Há os que olham nos olhos dos outros para se verem a si mesmos.
HJ: Surgiu a questão de como a linguagem e a imagem se transfiguram fora do livro. Imagino o rosto do personagem e fico com a impressão de que ele existe. Depois nunca em algum momento encontro ao menos com uma pessoa parecida. O mesmo aconteceu quando assisti o filme de um das suas obras. As falas eram as mesmas que as do livro mas as palavras não eram as mesmas ouvidas na voz do actor.
MC: A linguagem escrita nasce para se tornar voz (ou vozes no plural) Ela ganha corpo em quem lê o texto. Transitando para outro suporte (seja teatro, música ou cinema) essa linguagem passa a ter um contorno mais rígido. É por isso que um bom livro pode gerar uma má peça de teatro e um mau livro pode dar origem a grande filme. É preciso resistir à tentação de transplantar a linguagem escrita para um outro qualquer formato. Não é sem razão que a leitura é a mais rica das relações com a escrita. O leitor inventa o que o texto apenas sugere: a paisagem, a voz e o rosto dos personagens, o brilho e a sombra de um olhar. Todo o leitor é um co-autor. O mesmo não se passa com as outras artes audiovisuais em que os personagens chegam muito mais formatados.
HJ: O que é a vida?
MC: A melhor resposta é aceitar que não sabemos. A vida, tal como a conhecemos, é uma raridade na nossa galáxia. Talvez exista apenas no planeta Terra. E mesmo quando falamos do planeta, é preciso admitir que a vida apenas ocupa uma estreita faixa deste corpo imenso. A quase totalidade do volume desta grande esfera está desprovida de vida. Entendo que esta não é a resposta mais literária e aqui sobreveio a minha costela de biólogo. Fomos habituados a reconhecer o que é mensurável e o que tem limites. A vida escapa a estes modos de apreensão. A vida não é um somatório de criaturas. É uma fina rede, uma teia infinita de relações quase sempre invisíveis que faz com que milhões de seres inventem uma espécie de milagre que é a eternidade nascendo em cada instante. Há cientistas (e merecem o maior respeito) que dedicam toda a sua vida a tentar resposta à pergunta: quando surgiu a vida no nosso planeta. A resposta pode ser uma outra: a vida nasce e renasce todos os segundos.
HJ: A vida é um eterno exercício poético?
MC: Essa rede de relações invisíveis que criaram e que mantêm viva a própria vida. A poesia ensina-nos que não há fronteira entre o vivo e o não-vivo. Um rio é uma entidade viva, assim como são criaturas vivas a montanha, a terra, o mar, as nuvens. Tudo que é bicho e planta reparte connosco uma mesma condição, somos irmãos de todas as espécies que vivem dentro e fora de nós. Quando pediram ao cientista Niels Bohr, o grande criador da física nuclear, que ele definisse o que era um átomo ele disse: “para explicar isso eu tenho que recorrer à poesia.